quarta-feira, 2 de junho de 2010

Regresso a casa


Um caso de classe e distinção.
Não fora o lamentável equívoco de Dog eat dog (acesso tardio de comercialite aguda) e seria caso para se dizer que Joni Mitchell nunca erra. Com Night ride home não só não erra como acerta em cheio no alvo. Digamos que a cantora canadiana consegue aqui conciliar a extrema simplicidade dos arranjos com as típicas sinuosidades de um estilo vocal e composicional muito próprio, sem perder de vista uma acessibilidade que não envolve qualquer tipo de concessões.
Longe vão os tempos do jazz, de Mingus e Don Juan’s reckless daughter, ou os labirintos estruturais de The hissing of summer lawns. De regresso à serenidade e ao tom acústico da fase inicial, aquela que culmina em For the roses, ou, já num período de transição, em Court and spark. Night ride home flui com a facilidade das águas de um rio antigo, até ocupar o lugar exacto num universo pacientemente construído, a que se acede sem pressas nem escusadas violências. Joni Mitchell nunca foi, de resto, mulher de perder a cabeça. Mas, se, na aparência, se pode falar em termos de regresso, Night ride home representa, além de tudo o mais, a maturidade e a depuração de um estilo.
Se, por vezes, o seu modo de cantar pareceu difícil e a sua poesia demasiado obscura, agora a música revela-se com a limpidez e o brilho de um diamante perfeitamente lapidado. Entre o som dos grilos numa noite de Verão, de “Night ride home”, e o tom sombrio e despojado de “Two grey rooms”, Joni Mitchell vai aos poucos desvelando o seu universo pessoal, através da poesia e de uma voz que, como em “Passion play”, nos toca como o veludo sobre a pele.
Momentos trágicos, pontuados pelas explosões surdas dos timbalões orquestrais, em “Slouching towards Bethlehem” (baseado no poema “The second coming”, de W. B. Yeats). Momentos mágicos, vividos na Itália de Botticelli e Fellini, trazidos pelos ventos quentes do oboé que a própria Joni toca. Brilho cintilante ainda nas percussões de Alex Acuna, ao longo de todo o disco, e no saxofone de Wayne Shorter, em “Cherokee Louise” e “Ray’s dad Cadillac”. Depois do regresso, de novo a partida.

(Fernando Magalhães, Regresso a casa, in Pop-Rock [Portugal], 27-03-1991. A publicação deste texto insere-se na política Fair use.)