quarta-feira, 22 de junho de 2011

Joni Mitchell. Os 40 anos do melhor diário de melancolias

Joni Mitchell, 1971

Umas das mais populares frases de Joni Mitchell reza assim: «Quero a hifenização completa: folk-rock-country-jazz-clássica. Quando o conseguir, talvez os hífenes caiam e tudo se reduza simplesmente a música americana.» Porque sempre teve a mania de fazer tudo e sempre bem, a canadiana conseguiu transformar o seu compromisso de jovem desviada da realidade social, a atirar para o hippie, em obra artística de corpo amadurecido. E Blue, disco editado a 22 de Junho de 1971, foi o começo do fenómeno - não confundir com ‘estreia nos discos’, essa já tinha acontecido mas não estivera ao nível das maravilhas operadas na obra que hoje cumpre quarenta anos.
Desde cedo que Joni Mitchell acumulou mais-valias para ser grande nas coisas da música. Nasceu no Canadá (em 1943), terra fértil em talentos; em pequena sofreu de poliomielite e, tal como Neil Young, aproveitou o tempo perdido e transformou-o em retiro para cantorias e afins; aprendeu a tocar guitarra graças às canções de Pete Seeger; mudou-se para uma cidade grande, Toronto; e casou com um cantor folk, Chuck Mitchell, para depois se divorciar. Passou pelas desventuras urbanas de Nova Iorque e acabou apadrinhada por David Crosby. Vieram canções de génio na voz de outros e, pouco depois, os primeiros álbuns: Song to a seagull (1968), Clouds (1969) e Ladies of the canyon (1970), este último como ensaio para o momento único que foi Blue.
Em 1971, Joni Mitchell coleccionava desilusões. Os Beatles já não existiam. As fantasias hippies e a vontade de protestar à guitarra deixou de ser bom negócio. Estrelas pop morriam cedo e mal. E as dores eram também pessoais, com o fim da relação com Graham Nash como protagonista de tais episódios. O que faz a artista? Deixa de dar concertos, muda-se para a Europa e escreve canções aos magotes. A composição transforma-se no seu diário de bordo e, ao mesmo tempo, num confessionário.
Em Blue, a vida de Joni Mitchell é de todos, com dores de coração e exorcismos do passado (“Little green” é o exemplo maior desta exposição, uma canção inspirada na filha que Mitchell entregou para adopção anos antes) expostos através de um notável exercício poético. A música é crua - guitarras, pianos, dulcimer e pouco mais. Com convidados (Stephen Stills, James Taylor) mas com uma única pessoa a dar nas vistas. Não se ouvem as estruturas habituais da folk, dada a libertinagem da narrativa musicada; mas o improviso também não é jazz nem free-qualquer-coisa. A escrita surgia a caminho de tudo isto, como estava envolvida numa sensibilidade clássica que a tornava aparentemente frágil, mas em tudo coesa e decidida.
Guitarrista genial, compositora pouco dada a regras, Joni Mitchell tornava-se numa das mais importantes artistas do século XX. A autobiografia e a experimentação do formato pop no feminino como nunca antes se tinha ouvido. Para se fazer modelo perante gerações distintas, de Madonna a Feist e a todos os homens que a ouviram. Nome maior da música americana? Que assim seja, sem hífen.

(Tiago Pereira, Joni Mitchell. Os 40 anos do melhor diário de melancolias, in I [Portugal], 22-06-2011. A publicação deste texto insere-se na política Fair use.)