segunda-feira, 30 de junho de 2008

Já sabíamos, obrigado

Joni Mitchell é, segundo o Guardian, uma das melhores letristas de toda a música popular: http://music.guardian.co.uk/greatlyricists/

1983: Joni Mitchell no Guardian

domingo, 29 de junho de 2008

Shine

Joni Mitchell, Shine (2007)

Assim: um pé e depois o outro, ambos nus, sobre uma rocha que, de quando em quando, recebia as ondas de um mar cuja imensidão o seu olhar media. Atrás de si, as roseiras bravas. O cheiro doce que delas emanava confundia-se com o eterno desdobrar das ondas, com um sol de final de tarde, com a aragem própria de um Setembro ainda recente. Alongou mais uma vez os olhos pelo mar e notou que estava só. Viu ao longe uma família de focas a desenhar-se contra o céu, acima das águas, desaparecendo pouco depois e ressurgindo adiante. Reconheceu então que uma mulher nunca está só quando olha o mar.
Inquietou-se depois perante a ideia de que teria algo para fazer; não a casa que estava limpa, e também tinha comida no frigorífico suficiente para uma semana. Deixou-se ficar. Não havia nada nem ninguém à sua espera. Partiu quando já só uma réstia de dourado planava sobre as águas, apercebendo-se apenas no caminho de casa do real fundamento da sua inquietação: não sabia o que fazer até à chegada da hora em que o cansaço a levaria a procurar a cama. Não voltaria a rever os filmes antigos que a tinham acompanhado durante os nove anos que entretanto haviam passado sobre a edição de Taming the tiger, e tão pouco esperava encontrar conforto nos livros que conhecia de cor. Encontrava-se sozinha; Chaplin e Bergman haviam levado Kipling e Yeats a tomar um copo. Sentou-se por isso ao piano. Os seus dedos principiaram a arrancar dele padrões que exprimiam na perfeição aquele final de tarde. E porque nada mais tinha com que se inquietar (- A casa está limpa, e tenho comida no frigorifico suficiente para uma semana), decidiu prosseguir. Nasceram ao todo sete padrões diferentes, um para cada dia da semana, aos quais chamou de “One week last Summer”. Deve ter fumado um cigarro a seguir. Havia terminado a parte ‘durante os nove anos que entretanto haviam passado’.
Provavelmente não o sabia ainda. O contar dos dias era longo e Joni Mitchell havia anunciado a sua irrevogável saída de cena com a compilação Travelogue (2002). No entanto, quando recebeu um telefonema de Jean Grand-Maitre, director artístico do Ballet de Alberta, era quase certo que as possibilidades se haviam tornado em génese. Sabia-o agora. Grand-Maitre falou-lhe da eventual realização de Dancing Joni (mais tarde rebaptizado de The fiddle and the drum), um bailado que teria por base algumas das suas canções. Joni gostou da ideia e subiu a parada: não era apenas às canções que iria regressar; ocupar-se-ia também da mise en scène. Pegou para isso em algumas telas que tinha planeado expor em breve e juntou-lhe duas canções: “If” e “If Had a Heart I'd Cry”. Shine era agora uma evidência.
Seguiu-se a materialização. Editado no passado mês de Setembro, Shine marca o regresso de Mitchell às inquietações político-sociais – largamente evidenciadas no álbum Dog eat dog (1985), e em canções como “Turbulent indigo” (Turbulent indigo, 1994), “Banquet” (For the roses, 1972) e “The fiddle and the drum" (Clouds, 1969) –, que agora se vêem assentes em frases musicais onde a forma é quase inexistente, e onde a voz, profunda, se acha num misto de ira e esperança. Por vezes, as melodias não são mais do que panos de fundo sobre os quais proliferam palavras que se desdobram entre o real e o imaginário, obrigando o ouvinte a ligar os pontos entre sugestão e realidade. “This place”, por exemplo, parece lidar com a história de um urso que, uma vez por outra, ronda a sua casa, uma imagem que poderia servir de reforço a “One week last Summer”, quando na realidade nos remete para a diminuição dos habitats naturais; a balada “Strong and wrong" poder-se-ia, num primeiríssimo contacto, encaixar na veia romântica pela qual Mitchell é mais conhecida, porém, frases como «Onward Christian soldiers...» logo se apressam a encaminhar o ouvinte para a religião enquanto fomentadora da guerra, para a troca do amor espiritual e romântico por outras grandezas – assim se afiguram a Mitchell – menos laudáveis.
Ao enveredar por esse desdobramento, Mitchell parece querer instigar o ouvinte à participação cívica mas, a forma como o faz limita consideravelmente o impacto da mensagem. As letras raramente saem do registo panfletário – “If”, cujo texto se serve de um poema de Rudyard Kipling, é a grande excepção – e existe uma separação demasiado radical entre conceitos tão difusos como difusa – e confusa – é a percepção colectiva das fronteiras entre o “Bem” e o “Mal” – talvez porque nada tenha sido sentido de uma maneira impessoal ‘durante os nove anos que entretanto haviam passado’; talvez porque a parte jamais poderá julgar o todo. Assim, o que era verdade – entendemo-lo nós – para canções que abordavam, não as largas avenidas, mas as lúgubres esquinas do amor romântico, deixa de o ser quando o objecto retratado extravasa as fronteiras do pessoal. Perdoar-se-ia, contudo, este passo pejado de ingenuidade – são coisas que se perdoam a quem, talvez ainda embutido do espírito da década de sessenta, conserva os sonhos da juventude –, não fosse a qualidade destes textos ser manifestamente inferior à dos textos incluídos nos álbuns anteriores. Neste ponto, Shine é, de facto, um rude golpe para quem até agora seguia a velha máxima que dizia que os álbuns de Mitchell se lêem primeiro e ouvem depois.
Resta-nos, em jeito de consolo, o brilhantismo dos temas “One week last Summer”e “Night of the iguana”; o momento em suspenso que é “Shine”, a audácia de “Hana” (talvez o momento esteticamente mais próximo de Dog eat dog) e a certeza de que uma Joni Mitchell em baixo de forma continua, ainda assim, a situar-se muito além dos seus pares.

(Texto originalmente publicado na webzine Bodyspace [Portugal], a 31/10/2007.)

A diva problemática volta a brilhar

Há anos Joni Mitchell anunciava, com pompa, raiva e circunstância, o seu abandono da música. Mas em Outubro haverá novo álbum, Shine. Aqui se revê a vida tumultuosa da “diva problemática” que, segundo Elvis Costello, nos ensinou o amor através das canções.

Joni Mitchell, 2007

Foi há dez anos. Joni Mitchell passou cerca de cinco horas sentada numa sala de estar, entre câmaras e focos de luz a responder às perguntas dos entrevistadores do canal inglês VH1. Ao fim do dia sentia-se desgastada, exausta, esvaída, como se o corpo se reduzisse a pele e a pele guardasse apenas vazio.
Enfiou-se na cama e ficou lá três dias. Quando se levantou, foi até ao sofá onde o (agora ex-) marido (Larry Klein, seu produtor) assistia a um documentário em que um soldado americano recordava como tinha sido torturado na primeira Guerra do Golfo. Klein havia sido torturado no Vietname e contou-lhe que sentavam os prisioneiros numa cadeira e disparavam perguntas horas a fio até que eles cedessem.
“E foi assim que percebi o que me tinha acontecido”, confessava Mitchell à edição deste mês da revista The Word. A entrevista revê uma carreira de 40 anos dedicada À música, mas centra-se no regresso de Joni aos discos, aos 63 anos. Não houve razões de maior apresentadas: estava ali um piano, e voltar ao piano dói menos do que voltar à guitarra, e quando deu por si Joni tinha várias canções feitas. Um retorno tão abrupto quando o seu abandono.
Convém explicar que Joni, ao contrário do que os parágrafos acima possam deixar parecer, não desistiu dos discos há dez anos, após a entrevista ao VH1, por altura da edição de Taming the tiger, um disco menos arriscado que aventuras anteriores, em particular as dos anos ’70. Apesar da “tortura” ainda lançou dois discos, versões sinfónicas ora de canções alheias (Both sides now), ora de suas (Travelogue).
E só então, corria o ano de 2002, é que foi embora, com tanto espalhafato como agora regressa, e em ambos os casos verberando contra a indústria – ao ponto de na entrevista à The Word descrever o seu desalento nos seguintes termos: “Os críticos agarram-nos à década em que aparecemos e depois é suposto que morramos. Eles destruíram-me face a maravilhas de três acordes que não tinham nada a dizer. Já não conseguia aguentar mais tanta estupidez.”
Perante isto, talvez Jackson Browne, o cantautor dos anos ’70 que foi namorada de Mitchell, tinha razão: “Joni é uma queixinhas em doses industriais”, dizia recentemente, citado pela BBC. É que a Joni nunca faltou atenção dos média. E vários dos seus discos que foram mal recebidos, ao longo dos anos foram sendo revistos e hoje são considerados clássicos.
Mitchell, cuja biografia necessitaria de tantas páginas quanto Guerra e paz, nunca soube estar em outro lugar que não os extremos, Com a mesma intensidade com que no início dos anos ’70 descrevia relações amorosas falhadas, agora atira-se à política (o que já fazia em Dog eat dog, em 1985), mas num aspecto específico: “Por todo o globo a guerra aumenta e nós precisamos dessa energia para salvar o planeta. Ele é o nosso anfitrião e nós somos uma bactéria, uma infecção.”
Este tipo de intensidade – que põe em todas as frases, em todas as canções e pela qual foi especialmente reconhecidamente nos discos dos nos ’60 – traz-lhe indefectíveis, e entre músicos são às dezenas os que reconhecem a sua herança. Elvis Costello disse-nos uma vez, em entrevista: “O mundo é um lugar melhor graças às canções da Joni Mitchell”; e: “Só se começou a tratar o amor de forma complexa nas canções dela.”
Não vale a pena discutir dogmas pessoais, mas uma das afirmações tem matéria suficiente para análise: de facto Mitchell escreveu um punhado de canções intimistas, complexas musical e liricamente, e que não fazem do amor um lugar de simples conforto burguês.

Joni Mitchell circa 1970

Dedicado a…

Ela talvez tenha sido um pouco “twee”, ameninada, no início, na estreia em 1968 com Song to a seagull ou nos discos seguintes, Clouds (1969) e Ladies of the canyon (1970) – aqueles que lhe valem a imagem de menina frágil com voz de quatro oitavas a fazer baladas folk.
A imagem pode ter-se perpetuado até hoje, mas não faz sentido: logo em 1971 Joni lançou o que é hoje considerado a sua obra-prima, Blue. À época foi mal recebido pela crítica, mas foi um êxito de vendas, apesar de ser mais complexo que os anteriores: não era, definitivamente, folk, e Mitchell tinha inventado afinações só dela que davam às canções texturas harmónicas complexas. A voz, próxima da de Laura Nyro, vagueava por entre acordes suspensos sem nunca se ater a melodias fáceis – e no entanto ali estava um extraordinário disco de abandono e beleza insondável.
Blue foi o primeiro de três discos melódicos e bem aceites pelo público (os outros são For the roses, 1972, e Court and spark, 1974), mas também era um portento de melancolia, uma tremenda viagem aos demónios não de uma mulher, mas de um ser que por acaso é mulher. Joni: “O meu trabalho é fundo, pouco fica por escavar, está tudo lá.” E estava, mesmo que ela não o assumisse.
O único êxito (na altura) do disco, “A case of you”, canção de total arrebatamento amoroso, é hoje por todos os biógrafos de Joni considerada como sendo dirigida a Leonard Cohen. Não é caso único.
A ligação entre os dois nunca foi clarificada, embora seja uma das histórias da mitologia pop. Cohen nunca confirma os “affairs”, Mitchell sim, mas neste caso não o fez. O amantizado terá sido breve mas intenso, e Cohen tê-lo-á terminado sem razão aparente, deixando Joni profundamente magoada – ao ponto de mais tarde dizer que sabia onde Leonard ia roubar para escrever a sua poesia, e afirmar que não gostava de poetas. Tudo isto se sabe por colegas de profissão, e não por nenhum deles.
Mas houve pelo menos mais duas canções dedicadas a Cohen na obra de Joni: “The song about the midway”, em que canta “You were playing like a devil wearing wings”, e “The Gallery”, onde se pode ouvir “You said, I can be cruel/But let me be gentle with you”.
Cohen, no entanto, não foi o único cantor que Joni cantou. O mais conhecido de todos terá sido Graham Nash, dos Hollies e dos Crosby, Stills and Nash. Foi ele que a introduziu ao prazer dos charutos, mas não foi ele que a introduziu às drogas duras – esse terá sido Dylan. Durante a digressão Rolling Thunder Revue, de 1975, que o brado organizou, devido à falta de dinheiro decidiu-se que se pagava a toda a gente em cocaína.
Joni nunca tinha provado a substância, mas, com a intensidade habitual, entregou-se a ela. No fim da digressão o mestre budista tibetano Chogyam Trungpa perguntou-lhe se acreditava em Deus. Ela disse “Sim”, e snifou uma linha. “E esta é a minha oração”, atirou. Trungpa resolveu ocupar-se dela, e há-de tê-la assustado: Joni veio-se embora abruptamente e atravessou o país de mota para regressar à Califórnia, nunca mais tocando em drogas.
Foi por essa altura que começou a tocar com músicos de jazz experimental, fazendo alguns dos seus melhores e mais misteriosos discos: em 1975 houve The hissing of summer lawns, no ano seguinte Hejira começava a trazer a experimentação e em 1979 o magnífico Mingus, que estava já muito longe da pop.
Dos anos ’80 realce-se o começo da sua costela política com Dog eat dog, mas, como ela própria assinala, ficava sempre fora das tabelas de vendas – a MTV preocupa-se mais com a Madonna, que, curiosamente, diz que o seu disco favorito é The hissing of summer lawns (tal como Prince).
Como ela foi sempre vista como diva problemática – ao ponto de um ex-agente, Elliot Roberts, ter um dia afirmado que “Joni Mitchell já cancelou mais concertos do que os que efectivamente tocou” – toda a gente assumiu que o seu abandono se devia a ressabiamento por falta de atenção. Mas a verdadeira história é mais problemática.
Em 1997, um ano antes de editar o último disco de originais, ou seja, numa altura em que o disco já estava composto, Mitchell finalmente conheceu a filha que havia dado para adopção aos 21 anos, Kilauren Gibb.
Referindo-se explicitamente a esse assunto contava ao LA Times em 2004: “De certa forma é como se o meu dom para a escrita viesse da dor, da tragédia e da perda.” E concluía: “Quando a minha filha voltou para mim, a prenda de ter um dom foi-me retirada. A escrita de canções foi uma coisa que fiz enquanto esperei que a minha filha voltasse.”
Presume-se que já saibam como a história acaba. Joni e a filha neste momento não se falam. O novo disco chamar-se-á Shine.

(João Bonifácio, A diva problemática volta a brilhar, in Ípsilon/Público [Portugal], 20-04-2007, pp. 70-71. A publicação deste texto insere-se na política Fair use.)